Contexto
Desde o início da epidemia de Aids, em 1980, até o segundo semestre de 2012, foram registrados 656.701 casos de infecção pelo vírus HIV no Brasil. Em 2011 a taxa de incidência da doença no país foi de 20,2 casos por 100 mil habitantes. Entre 2001 e 2011 a taxa de incidência cresceu em todas as regiões do Brasil, com exceção do Sudeste (queda de 22,9 para 21 casos por 100 mil habitantes). No Nordeste o aumento foi de 7,5 para 13,9 e de 9,1 para 20,8 no Norte do país. Os dados são do último Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde, de 2012.
A médica e professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) especialista em HIV/Aids, Lígia Kerr, analisa o panorama da doença do Brasil e reflete sobre a situação do Nordeste diante deste quadro. Kerr defende que é preciso acabar com as desigualdades para garantir prevenção, diagnóstico e tratamento para todos os brasileiros. A especialista fala ainda sobre os avanços já alcançados, preconceito e os desafios na construção de um novo cenário para os soropositivos no país. “Muito já se caminhou, mas muito falta ainda para se completar este longo caminho da luta contra a Aids”, acredita.
Por que a Aids é uma doença que está relacionada com a questão da vulnerabilidade da população?
No Brasil, a vulnerabilidade tem sido compreendida sob três aspectos distintos, mas que estão profundamente imbricados. Um seria a vulnerabilidade social, na qual aspectos socioeconômicos, políticos, culturais fazem com que certos seguimentos sejam mais vulneráveis à Aids. Uma forma de verificarmos este aspecto, por exemplo, é o fato de regiões mais pobres do país, como a Nordeste, concentrarem os piores indicadores relacionados à Aids, tais como menor uso de preservativos na última e nas primeiras relações sexuais, e menores níveis de conhecimento sobre a doença Aids. Um segundo aspecto da vulnerabilidade é o institucional, ou seja, as pessoas que teriam acesso desigual à prevenção e tratamento, por exemplo. Para ilustrar este aspecto, poderíamos pensar nas taxas de transmissão materno-infantil do HIV. Enquanto na região Sudeste já se pode observar taxas tão baixas como aquelas encontradas nos países desenvolvidos, no Nordeste você ainda pode achar menos de 50% das mulheres tendo acesso a todas as etapas da prevenção da transmissão materno-infantil da Aids e taxas escandalosamente altas, chegando a 13%. Finalmente, um outro lado da vulnerabilidade seria o individual. Como seres humanos que somos, podemos enfrentar as experiências de vida de formas diferentes e, assim, estarmos mais ou menos expostos à infeção pelo HIV, por exemplo. Como fica claro, é bastante difícil separar estas formas de vulnerabilidade, pois a conjunção de todas elas, faz com que algumas pessoas estejam muito mais vulneráveis à Aids.
Já é possível traçar um perfil dos infectados pelo vírus do HIV? Qual seria esse perfil?
Desde que a Aids foi descrita pela primeira vez no Brasil, o perfil da epidemia mostra-se bastante dinâmico, ou seja, muda com o passar dos anos de acordo com vários fatores intervenientes. No início da epidemia, os casos se concentraram em homens que fazem sexo com homens (HSH), hemofílicos e hemo-transfundidos e usuários de drogas injetáveis. Com o passar dos anos, este perfil foi se alternando aumentando os casos em mulheres, crianças, homens heterossexuais, decrescendo os casos em usuários de drogas, com exceção do Rio Grande do Sul, onde ela apareceu de forma intensa mais recentemente. Também vem aumentando em jovens, adolescentes e em adultos com mais de 50 anos.
Hoje, a epidemia é conhecida como concentrada, no país, onde as taxas em algumas populações mais vulneráveis é muitas vezes a da população geral (estimada em torno de 0,6%). Entre os HSH se observa hoje as maiores taxas de infecção variando de 5,2 a 23,7%, dependendo da cidade estudada, e 14,2% para o total das 10 cidades brasileiras estudadas. Entre mulheres profissionais do sexo 4,8% e usuários de drogas 5,9%.
Nas primeiras décadas de convivência com o HIV, a doença era bastante associada aos homossexuais. Hoje a Aids ainda é mais frequente neste grupo? O que mudou?
Desde o diagnóstico dos primeiros casos de Aids no Brasil a Aids afetou desproporcionalmente os homens que fazem sexo com homens. Casos entre jovens HSH estão crescendo no país e as taxas de infecção entre eles podem chegar a quase 40 vezes àquela estimada para população geral no Brasil. Durante este período, esta população tem sido ignorada e a prevenção entre os mesmo negligenciada.
Recentemente, uma campanha promovida pelo Departamento Nacional de DST/Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde foi impedida de ir ao ar por pressões políticas. Desta forma, esta população é altamente vulnerável à infecção pelo HIV. Cerca de 66% dos HSH infectados chegam aos serviços de saúde tardiamente.
Nos últimos anos quais foram os maiores avanços no que diz respeito ao tratamento e à prevenção da doença?
Muitos foram os avanços na área do tratamento da Aids. As medicações conhecidas como antirretrovirais combatem a multiplicação do HIV e fortalecem o sistema imunológico. Tiveram início com o AZT (inibidor da transcriptase reversa) e, posteriormente, com medicações que compõem o que popularmente se conhece como “coquetel” (didanosina, lamivudina, estavudina, indinavir, nevirapina, ritonavir e tenofovir).
Como o Brasil está diante dos avanços mundiais no campo da prevenção e tratamento?
O Brasil teve muitos exemplos de dinamismos e vanguarda na prevenção e tratamento da doença. Esta atuação recebeu amplo reconhecimento internacional pelos bons resultados alcançados com ações que foram baseadas no diálogo, tanto com os grupos mais afetados quanto nas evidências científicas e na defesa dos direitos humanos. Entretanto, vários indicadores epidemiológicos revelam o crescimento da epidemia e a lentidão na incorporação de inovações preventivas. As posições governamentais têm sido de alto cunho conservador e violam abertamente os direitos humanos, censurando campanhas de prevenção voltadas às populações mais vulneráveis. Observa-se o aumento da vulnerabilidade destes segmentos sociais que já são mais afetados pela epidemia. O diálogo com a sociedade e a participação social encontram-se fragilizados. Diante deste quadro, consideramos bastante grave diante do quadro mundial.
O Nordeste está sintonizado ao ritmo nacional e mundial?
O Nordeste brasileiro apresenta os piores indicadores, especialmente os que estão ligados aos maiores baixos níveis educacionais detectados nesta região. Estudos mostram que, enquanto a epidemia se estabiliza, mesmo que em patamares altos, na região Sudeste, o Nordeste tem mostrado ascensão. Os níveis de conhecimento sobre a doença e suas formas de prevenção, assim como o uso do preservativo, tendem a ser menores que em outras áreas mais desenvolvidas do país. As taxas de transmissão materno-infantil tendem a ser bem maiores que as registradas no Sudeste e o teste para o HIV também apresenta taxas menores nesta região. Estes dados mostram claramente o descompasso entre o Nordeste quando comparado ao Sudeste brasileiro. E esta desigualdade tem que terminar.
Houve uma melhora no acesso ao tratamento?
Embora o Brasil tenha sido um dos primeiros países a distribuir gratuitamente a medicação antirretroviral, o que ainda se observa é que o diagnóstico da infecção pelo HIV no Brasil ainda é muito tardio. Mesmo tendo implementado a distribuição do teste nacionalmente, o número está muito aquém do necessário. O acesso da população, em especial daquelas mais vulneráveis, é complexo. As dificuldades vão desde o desconhecimento dos locais que realizam exames até o estigma e preconceito, incluindo a falta de confiança nos profissionais da saúde na confidencialidade do resultado. Em torno de 65% dos homens chegam muito tarde aos serviços, enquanto que para as mulheres, em idade fértil, pelo exame de pré-natal, este diagnóstico é mais precoce. Os desafios ainda são muito grandes.
As desigualdades socioeconômicas refletem diretamente nas condições de saúde da população. No caso do HIV, como estas diferenças impactam na vida das populações mais carentes?
Esta desigualdade se expressa nas taxas diferenciais de infeção pelo HIV nas diferentes populações, diferentes regiões, nas possibilidades de acesso ao diagnóstico, ao teste e, finalmente, ao tratamento. Muitas unidades especializadas estão sendo fechadas, dificultando o seguimento e tratamento dos pacientes. E as populações mais carentes têm sobre elas mais um agravo de alta complexidade.
Como o nível de instrução e os fatores culturais e socioeconômicos influenciam o aumento ou a redução de casos?
Os dados citados anteriormente sobre conhecimento, uso de preservativos, prevenção, acesso ao teste e acesso ao diagnóstico impactam diretamente na saúde destas populações mais carentes, em especial quando se acrescenta o fato de serem mais vulneráveis, como as mulheres profissionais do sexo, os HSH e os usuários de drogas. Evidentemente, entre estas populações, observa-se um aumento no número de casos, como o que vem se observando nas regiões Nordeste e Norte do país.
Quais são os maiores desafios para diminuir o número de novos casos da doença?
As possibilidades nos dias de hoje são muitas. A terapia pré-exposição é uma das ferramentas que vem sendo timidamente implantada no Brasil. Não se pode deixar a prevenção de lado, em especial, o uso do preservativo. Outro aspecto crucial é o acesso ao teste, em especial para as populações mais vulneráveis e ao tratamento. É igualmente importante reabrir o diálogo com a população mais afetada, a sociedade civil, os pesquisadores e os profissionais da área da saúde na discussão de como enfrentar os atuais desafios da Aids.
Diante esse quadro, a senhora acha que é possível superar o problema da Aids?
A Aids é produto da complexidade das relações humanas e não acredito que seja fácil acabar com a mesma. As terapias pré-exposição levaram cientistas a anunciarem o fim da Aids. Mas como levar isto a sua plenitude se ferramentas triviais como o teste para o HIV, que existe há cerca de 30 anos, não está acessível para enormes seguimentos populacionais? Como eliminar estes imensos fossos de desigualdade que impedem milhares de seres humanos de realizar prevenção, diagnóstico e tratamento da Aids, de terem uma vida digna e sem estigma ou preconceito? Muito já se caminhou, mas muito falta ainda para se completar este longo caminho da luta contra a Aids.
- Site para mais informações: HIV e Aids: qual a diferença
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